As funções e os papéis dos estudos do texto e do discurso
É importante relatar ainda quais são os papéis e as funções
dos estudos do texto e do discurso no Brasil. Conforme Barros, as funções
primeiras dos estudos do texto e do discurso são, sem dúvida, as dos estudos
linguísticos em geral: a de contribuir para o conhecimento da linguagem,
através da língua e de seus discursos e, pela linguagem, do homem; a de
concorrer para o desenvolvimento teórico e metodológico da própria disciplina.
Com esses fins, os estudiosos do discurso no Brasil têm realizado pesquisas nas
várias direções já apontadas neste artigo conforme a perspectiva teórica
escolhida. O acúmulo de conhecimento já é grande e sabe-se hoje bem mais sobre
o discurso do que se sabia há trinta anos. Além das preocupações teóricas, os
estudos do texto e do discurso têm papéis que poderiam ser ditos “sociais”, não
fosse a redundância do termo nesse campo do conhecimento: o de participar dos
debates sobre ensino e aprendizagem da competência discursiva, em língua
materna e em segunda língua; o de contribuir para que se conheçam melhor, por
meio dos discursos, a cultura e a sociedade brasileiras.
O nascimento e
constituição da análise francesa do discurso
A Análise do Discurso surgiu na França, nos anos de 1960,
para suprir as insuficiências da análise de conteúdo (das ciências humanas),
que concebia o texto em sua transparência, como representação da realidade no
mundo (extradiscursivo) sem considerar as relações linguístico-textuais com as práticas
ideológicas em sua exterioridade. Nessa análise de conteúdo, atravessa-se o texto, buscando encontrar
nele um sentido. A AD, ao contrário, considera o texto em sua opacidade
significativa, enfatizando-lhe o funcionamento linguístico-textual e sua materialidade, que
constitui discursos no contexto ideológico-histórico-social.
Por exemplo, o resultado de uma eleição vai produzir
sentidos completamente diferentes a depender de onde circule como acontecimento
enunciativo-discursivo:
1. Haverá grupos que entenderão o
resultado como mudança, esperança, renovação;
2. Outros grupos entenderão como
retrocesso, involução, atraso social;
3. E outros ainda entenderão como desilusão
e estagnação.
Nessa perspectiva, a AD recusa fortemente o pressuposto da
informacionalidade e representação do mundo verdade como características
essenciais e primordiais da linguagem, posto que a produção de sentidos nos textos
relaciona os elementos linguísticos a sua exterioridade discursiva,
considerando as relações de poder entre as posições-sujeito em seu
funcionamento e as determinações
ideológicas que ancoram as
formações discursivas por trás dos textos.
Portanto, os sentidos produzidos nos textos vão muito além
da sua literalidade lexical e estão marcados pela sua historicidade na memória
enunciativo-discursiva. Assim, é
ilusão acreditar que a linguagem
simplesmente “informa”, representa de maneira neutra uma verdade que está fora
dela, no mundo.
Conforme Maingueneau, o nascedouro da AD traz um legado de
práticas de estudo da linguagem que não pode ser apagado. Análise do Discurso –
três práticas:
1. Tradição filológica – história e
reflexão sobre os textos (instrumento para história, antropologia, filosofia).
2. Prática da explicação de textos –
teoria da leitura (contexto universitário na França).
3. Base no estruturalismo – que via o
texto em sua imanência diferenciado dos modos de estudo da filologia.
Orlandi sintetiza um pouco mais sistemática e
especificamente as balizas teórico-epistemológicas da AD, que podem ser desenhadas a
partir de três rupturas teórico-filosóficas, três rupturas que estabelecem
novos campos de saber:
Marxismo (materialidade e opacidade histórica –
real da história);
Linguística (materialidade e opacidade da
linguagem – real da língua);
Psicanálise (materialidade e opacidade do sujeito
– real do inconsciente).
No conjunto dessas rupturas, constitui-se a ruptura da AD.
Mas atenção! Você não deve supor que a AD é simplesmente a soma desses três
novos campos do saber.
A AD recorta aspectos pontuais dessas áreas (o real da
história, o real da língua e o real do inconsciente) e os articula,
relacionando-os e integrando-os a outras categorias
teóricas, numa nova prática científica, a análise discursiva.
Não se pode deixar de enfatizar aquelas que foram as
influências teóricas pontuais para a constituição das balizas epistemológicas
da AD:
Influência do pensamento marxista por meio de Althusser:
distinção entre ciência e ideologia, recorrendo ao materialismo histórico –
ideologia geral x ideologias particulares. Para M. Pêcheux, principal autor na
França dessa corrente, uma das vias para esse funcionamento é a linguagem: ela
é o lugar privilegiado em que a ideologia se materializa.
Influência da linguística estrutural: a AD apoia-se criticamente em
Saussure, mesmo que reconhecendo nele o ponto de origem da ciência linguística
– fonologia, morfologia, sintaxe. Mas afirma que o estruturalismo saussuriano
não dá conta da semântica discursiva e suas condições sócio-históricas de produção e constituição. A linguística de Saussure era insuficiente por
não investigar linguisticamente a linguagem, incorporando a sua
“exterioridade”, sua condição social, histórica e ideológica.
Influência da psicanálise freudiana por meio de Lacan: a AD
apoia-se na ideia de que é o sujeito que se coloca como tendo sua
opacidade – ele não é transparente nem para si mesmo, nem para os outros. A
constituição da subjetividade está inteiramente relacionada com a alteridade –
o outro.
Influência da filosofia foucaultiana: a história tem sua
materialidade e opacidade, o homem faz a história, mas ela não lhe é
transparente. Aprofundamento filosófico sai das noções de “ideologia” e de
“luta de classes” para ir além – à noção de práticas discursivas e das relações
de saber e poder.
Foucault concebia o discurso como dispositivo enunciativo e
institucional de diferentes práticas discursivas.
Análise do discurso –
três fases
A primeira fase
Caracteriza-se pelo esforço de teorização
de uma máquina estrutural-discursiva
automática. Essa proposta de Análise do Discurso é iniciada em 1969 com
o lançamento do livro Análise automática do discurso, de Pêcheux, tendo como
proposta a apresentação de algoritmos para a análise automática de discursos,
apoiada no método de Harris. A passagem para a segunda fase é defendida por
Pêcheux, no sentido de que a tomada de posição estruturalista esfuma-se depois da AD e produz
uma recusa de qualquer metalíngua universal supostamente inscrita no inatismo
do espírito humano e de toda suposição de um sujeito intencional como origem
enunciadora de seu discurso.
A segunda fase
Começa em 1975 com o lançamento de Semântica e discurso, de
Pêcheux, aprimorando conceitos e introduzindo novidades essenciais para a
teoria como a noção de formação discursiva heterogênea, trabalhada na
arqueologia de Foucault, aparecendo para fazer explodir a noção de maquinaria
estrutural fechada da fase anterior. Outra noção fundamental que surge é a de
interdiscursividade, que se revela como base para se pensar o processo
discursivo e é proveniente da Filosofia da linguagem de Bakthin. A AD representou
um período de amadurecimento, não metodológico, mas teórico, para a terceira
fase, momento no qual a teoria do discurso assumiu a sua forma atual: discurso
como o encontro da estrutura e do acontecimento.
A terceira fase
Traz uma inovação metodológica e uma sofisticação no
tratamento do sujeito. Até a AD, o método harrisiano ainda funcionava, dando
lugar na AD ao chamado gesto de leitura. No tratamento do sujeito, a questão da
dispersão do sujeito e suas posições na formação discursiva entram em cena para
transformar a ideia do sujeito comportado, obediente em seu assujeitamento a uma
forma-sujeito historicamente determinada.