A enunciação sob a ótica de Bakhtin
Para uma primeira abordagem de enunciação, partimos das
considerações de Bakhtin, que concebe linguagem como dialógica (e não
monológica ou monofônica), fundamentando-se no produto ideológico
de ordem social, sob as influências do marxismo e da filosofia da linguagem.
A teoria bakhtiniana considera que a enunciação dá-se ideologicamente, não possuindo um sentido exato, unicentrado,
transparente, veiculado enquanto informação por uma única voz. Bakhtin aprofundando-se na perspectiva dialética da linguagem, ressalta a consideração de um sistema linguístico de normas
imutáveis, e assim analisa criticamente três diferentes perspectivas frente à
linguagem, enquanto sistema de normas, em relação ao fenômeno da enunciação:
a) o subjetivismo individualista (da
consciência individual), a partir do qual é que a língua se apresenta como
sistema de normas imutáveis e rígidas. Ao que Bakhtin considera que ao analisar
tal sistema, profundamente, por um ângulo objetivo, é possível notar que tal
proposta não procede, devido a não se ter encontrado indício desse sistema
fechado de normas imutáveis;
b) o objetivismo abstrato em que,
conforme Bakhtin, podemos entender a língua podendo ser percebida distintamente
do modo como se apresenta em um contexto individual num dado momento, ou seja,
a língua se apresenta como uma corrente contínua, passível de evolução, quando
comparada ao imutável, (tal teoria define que todo sistema de normas sociais
existe se estiver relacionado à consciência subjetiva dos indivíduos e da
coletividade em que essas normas se regulam);
c) a relação entre consciência subjetiva
e a língua como sistema objetivo de normas incontestáveis é desprovida de
qualquer sustentabilidade, sendo assim, a teoria bakhtiniana não considera a
língua como sistema de normas imutáveis, pois pensar a natureza objetiva da
língua, afirma Bakhtin é incorrer num grave erro, já que fechada em seu sistema
imutável a língua não abriria espaço para ser observada a partir das suas
características mais essenciais, no que tange o dialogismo e a polifonia nela
constitutivas de subjetividade.
Conforme Bakhtin, ao entrelaçar a relação perfeitamente
objetiva que a língua constitui com a consciência relativamente individual de
um sistema de normas imutáveis, torna-se possível entender que esse pode ser o modo
de existência da língua para uma comunidade, embora Bakhtin ressalte que tais
ideias não se definem claramente.
Dessa forma, torna-se evidente para Bakhtin o questionamento
se a língua existe para a consciência
subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas
intocáveis, pois:
Devemos, agora, perguntar-nos se a língua existe realmente para a consciência
subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas e
intocáveis. O objetivismo abstrato captou corretamente o ponto de vista da
consciência subjetiva do locutor?
É realmente este o modo de existência da língua na
consciência linguística subjetiva? A essa questão somos obrigados a responder
pela negativa. A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua como
de um sistema de formas normativas. Tal sistema é uma mera abstração, produzida
com dificuldade por procedimentos cognitivos bem determinados. O sistema
linguístico é o produto de uma reflexão sobre a língua, reflexão que não
procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos
imediatos da comunicação. Na realidade, o locutor serve-se da língua para suas necessidades
enunciativas concretas (para o locutor, a construção da língua está orientada
no sentido da enunciação da fala). Trata-se, para ele, de utilizar as formas normativas
(admitamos, por enquanto, a legitimidade destas) num dado contexto concreto.
Para ele, o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da
forma utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto,
afirma Bakhtin.
Partindo da afirmação acima, em relação ao uso que o locutor
faz da língua para suas necessidades enunciativas concretas, podemos
compreender que Bakhtin discorre sobre alguns conceitos básicos definidos por
ele como:
a) a língua: não se define enquanto um
sistema de normas imutáveis, estagnadas, mas sim enquanto uma corrente passível
de evolução contínua que se constitui perante o social, fazendo-se desta forma, variável
e flexível em determinado contexto, relativa às necessidades de seus falantes;
b) a enunciação: define-se através da comunicação verbal, a qual estrutura-se por meio
da relação com outras enunciações,
em um contexto ideológico, uma vez que a enunciação pode ser entendida como
resultado da fala, já que esta tem a função de produzir compreensão.
Ao abordarmos as concepções de Bakhtin sobre língua, fala e
enunciação é de suma importância destacar que em seu trabalho teórico ele
enfatiza que a enunciação se constitui através das relações que esta estabelece
com outras enunciações, dentro ainda da mesma ideologia, ou, como explana o
próprio autor, dentro de um “domínio ideológico”, pontua Bakhtin.
Referente, ainda, à enunciação, podemos destacar segundo a
perspectiva de Bakhtin que toda enunciação efetiva seja ela de que natureza
for, pode vir a concordar ou discordar com um fato qualquer, uma vez que, este
pode ser acompanhado de uma clareza ou não. De forma que podemos acrescentar
que para Bakhtin, sua teoria da enunciação se apresenta de forma social e não individual,
ao passo que se torna evidente apontarmos estas afirmações nas suas próprias
palavras.
Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu
produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual
no sentido estrito do termo, não pode ser explicado a partir das condições psicofisicológicas
do sujeito falante. A enunciação é de natureza social, afirma Bakhtin.
Veja que para o locutor o que importa é aquilo que permite
que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que torna um signo
adequado às condições de uma situação concreta dada não tendo importância a
forma linguística enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo, mas tendo a
importância que o signo é sempre variável e flexível.
De fato, podemos ainda mencionar que a enunciação, segundo
Bakhtin, não é capaz de trabalhar as formas de composição do todo, ou seja,
esta não consegue relacionar os elementos que a constitui e as formas que a
insere, uma vez que, essa enunciação só pode se constituir quando a mesma se
relaciona com outras enunciações.
Conforme a teoria da enunciação de Bakhtin, o processo de
decodificação (compreensão) não pode ser confundido com o processo de
identificação, já que o signo é decodificado e o sinal identificado.
O sinal é uma entidade imutável, ele não pode substituir,
nem refletir, nem tão pouco refratar entre outras ações, de fato o sinal não
pertence ao domínio ideológico, mas sim aos instrumentos simbólicos de produção
no sentido amplo do termo.
Você pode observar que enquanto uma forma linguística for
apenas um sinal e a mesma for percebida pelo receptor como tal, é possível
constatar que o sinal não terá nenhum valor linguístico, já que a pura sinalidade
não existe, isto é, a forma é orientada pelo contexto, que por sua vez já
constitui um signo, deixando-nos entender que, assim como um elemento torna a
forma linguística, um signo não é a sua identidade como sinal, e sim sua mobilidade
específica.
Para exemplificar a discussão acima, tomemos o conhecido
“sinal” de trânsito que se refere à mensagem “Não estacione”.
Como sinal, ele é facilmente identificado, mas não há como
referi-lo em sua pura sinalidade, já que sua mobilidade no contexto social é tal que o próprio
sinal já em sua forma orientada pelo contexto (na linguagem do trânsito) se
constitui em signo dentro de sua simbologia ideológica, histórica e social.
Ao discorrermos sobre língua, fala e enunciação sob a ótica
de Bakhtin, é prudente destacarmos sua posição sobre a teoria da enunciação e
seus respectivos problemas sintáticos. No que diz respeito à teoria da
enunciação, o problema da sintaxe pode prejudicar a compreensão da língua e de
sua evolução, o que consequentemente acarreta um mau uso quanto às formas
devidas dos atos de fala, dos quais resulta o produto da enunciação: o
enunciado, conforme a teoria bakhtiniana.
Perceba que, conforme Bakhtin, a teoria da enunciação
considera que o processo mais difícil da decodificação dá-se nas análises sintáticas do discurso, que de fato
constroem o corpo da enunciação. Como essas análises são sempre vistas por meio
da construção fonética e morfológica, tornam-se algo complicado quando
a intenção é trazê-las para o objetivismo abstrato. A
dificuldade quanto às formas sintáticas, (mas que também ocorre tanto no nível
da construção fonética, como da morfológica), deve-se ao fato de que tais
formas são de fato mais concretas
que as demais. Essas formas sintáticas são estreitamente ligadas às condições
de fala e é exatamente por serem ligadas à fala que a teoria bakhtiniana
ressalta a prioridade das formas sintáticas sobre as formas fonético-morfológicas.
A teoria da enunciação de Bakhtin ressalta que devido à
falta de interesse pelos fenômenos da enunciação na linguística estrutural, não
foi possível tratar de compreensão real, concreta e não escolástica das formas
sintáticas no funcionamento enunciativo. Para o linguista estrutural é mais
confortável lidar com a questão da operação no centro da unidade frasal, na
qual é possível ainda considerar que: quanto mais o linguista se aproxima das
fronteiras do discurso, mais ele se aproxima da enunciação e sua posição não se
torna segura (se torna instável), uma vez que, para nenhuma dessas categorias
linguísticas convém a determinação do todo, já que essas categorias só são
aplicáveis no interior do território da enunciação.
Desta forma, para Bakhtin o interesse da teoria da
enunciação dá-se não somente em função dos problemas sintáticos, mas também
na composição dos parágrafos que constituem um discurso e demais níveis de
relação das partes com o todo, importando-se com o que precisamente
interessa para analisar o entrelaçar da voz do falante com a voz do ouvinte,
através da materialidade enunciativa.
De fato, a teoria bakhtiniana se atém ao olhar objetivo no
que diz respeito ao estudo das formas da comunicação verbal e das formas
correspondentes da enunciação completa, já que estas falam sobre o sistema dos
parágrafos e todos os problemas análogos. Ou seja, Bakhtin se interessa pelos
esquemas linguísticos envolvendo discursos direto, indireto e indireto livre,
juntamente com suas modificações e suas variantes que são encontradas na língua
e que servem como transmissores das enunciações de outrem (e que integram
enunciações de outrem), abrindo a possibilidade do método linguístico-sociológico.
Quanto aos tipos de discursos apontados acima, juntamente
com os problemas sintáticos, a teoria bakhtiniana julga necessária uma
abordagem sobre a conceituação de discurso pela teoria da enunciação.
Esta irá explicar o funcionamento do discurso de outrem, a
partir de seus esquemas específicos, realizados sob a forma de variantes
especificas, incluindo as mudanças possivelmente encontradas nas fronteiras gramaticais
e estilísticas. Valendo-se da forma de transmissão do discurso de outrem, que se define
numa relação funcional de uma enunciação com a outra diante das possíveis
edificações da própria língua. Esta abordagem do discurso relatado constitui-se
em seus esquemas de base ou em variantes, embora a teoria da enunciação
ressalte que é definitivamente inacessível estabelecer uma fronteira entre a
gramática e a estilística, entre o uso do esquema gramatical e sua própria
variante estilística. Para Bakhtin:
O discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de
outrem; ele integra ativamente e concretiza na sua transmissão outros elementos
e matizes que os outros esquemas deixam de lado. Por isso transposição literal,
palavra por palavra, da enunciação construída segundo um outro esquema só é possível
nos casos em que a enunciação direta já se apresenta na origem como uma forma
algo analítica – isso, naturalmente, dentro dos limites das possibilidades
analíticas do discurso direto. A análise é a alma do discurso indireto, afirma
Bakhtin.
Dessa forma, segundo a teoria da enunciação de Bakhtin, é de
suma importância explanarmos que a determinação das linhas de marca para
definir o discurso indireto possui características que exprimem uma tendência
de apreensão ativa do discurso de outrem e que cada esquema recria, a partir de
seus métodos, a enunciação, proporcionando uma orientação particular. Uma vez
que o discurso indireto se dá de forma analítica, ele possui suas variantes,
sendo a primeira o discurso indireto analisador do conteúdo, a segunda o
discurso indireto analisador da expressão e a terceira variante sendo a variante
impressionista.
A primeira variante do discurso indireto pode ser
compreendida como a apreensão da enunciação de outrem no plano temático,
excluindo o que não tiver significação temática, ou seja:
A variante analisadora do conteúdo abre grandes possibilidades
às tendências à réplica e ao comentário no contexto narrativo, ao mesmo tempo
que conserva uma distância nítida e estrita entre as palavras do narrador e as palavras
citadas. Graças a isso, ela constitui um instrumento perfeito de transmissão do
discurso de outrem em estilo linear, afirma Bakhtin.
Referente à segunda variante do discurso indireto, a
analisadora da expressão, esta pode ser entendida como a integração de forma
indireta das palavras e das maneiras de dizer do outro, tornando-se assim facilmente
notória, justamente por sua especificidade se dar através da ironia, humor ou o
uso de aspas.
Enquanto a terceira variante do discurso indireto, a
impressionista, transmite os pensamentos e os sentimentos da personagem, ou
seja, o discurso indireto desta, sendo utilizada pelo autor do discurso com uma
intencionalidade de focalizar para ressaltar e abreviar o tema que pretende
abordar.
Quanto ao discurso direto, Bakhtin menciona um emprego do
mesmo ou de uma de suas variantes simultâneas, diante do ato de transposição
inseparável dessa forma, o que torna justificável a sua tendência analítica
manifestar-se principalmente pelo fato dos seus
elementos serem emocionais e afetivos. O discurso direto se diferencia do
discurso indireto pelo emprego da entonação emocional (apelo de convencimento)
e a variante deste é constituída pela ambiguidade, empregada mais
especificamente na literatura.
A construção do discurso direto provém das marcas principais
do discurso indireto, exatamente pela natureza desse discurso se dar por meio
de temas básicos que são antecipados pelos contextos e evidenciados por
entonações do autor ou personagens, essas entonações quase sempre são
acompanhadas por um enfraquecimento da objetividade do contexto narrativo.
Conforme Bakhtin, o discurso direto e o discurso indireto
formam um esquema misto quando engendram o discurso indireto livre, o qual
proporciona um discurso por substituição do contexto narrativo em si para um
contexto narrativo objetivo, ou seja, é a forma de discurso que o autor utiliza
para ressaltar seus conceitos apreciativos, que se dão também através de suas
entonações.
Enfim, Bakhtin legou-nos uma importante trilha
de reflexões a respeito do dialogismo,
da polifonia, da enunciação, da interdiscursividade e até mesmo da noção de
gênero textual e discursivo, defendendo o princípio do dialogismo como
constitutivo da linguagem e a natureza social da enunciação.
Para ele, a enunciação é o produto da interação dos
indivíduos socialmente organizados e, ainda que não haja um interlocutor real,
este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual
pertence o locutor.
O termo “diálogo” deve ser entendido num sentido amplo, não
apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas
como toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.
“A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros” e em todo enunciado descobriremos que está o outro em diferentes graus
de alteridade.
Existe uma gama dos gêneros mais difundidos cotidianamente,
tão cristalizados, apresentando formas tão padronizadas (por exemplo, os provérbios),
que a expressão individual do locutor praticamente só pode manifestar-se na
escolha do gênero.
Bakhtin ressalta que as palavras não são de ninguém, estão a
serviço de qualquer locutor e de qualquer juízo de valor, e podem mesmo ser
totalmente diferentes, até mesmo contrárias. Conforme Bakhtin, em relação às
fórmulas estereotipadas da vida corrente, os sistemas ideológicos constituídos
da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da
ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte
influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia.
Diana L. P. Barros sintetiza em um capítulo as principais
contribuições de Bakhtin às teorias do discurso. Assim, põe-se a questão: “de que forma e por quais razões Bakhtin é considerado um precursor ou antecipador
de perspectivas teóricas tão diferenciadas?”. O trabalho de Barros procura mostrar
que foram suas reflexões variadas sobre o princípio dialógico da linguagem que
anteciparam e influenciaram os estudos do texto e do discurso, tanto na própria
concepção de texto (discurso, ou enunciado) enquanto objeto das ciências
humanas, como sobre o princípio dialógico e seus diferentes desenvolvimentos
nas diferentes teorias.
Em primeiro lugar, vamos acompanhar a reflexão crítica feita
por Bakhtin sobre a defesa do texto como objeto das ciências humanas. Ele
defende (ao contrário da tradição estruturalista) que a especificidade das
ciências humanas está no fato de que seu objeto é o texto e o discurso, de modo
que as ciências humanas voltam-se para o homem como produtor de textos e discursos.
O homem é posto em evidência
através dos textos e se constitui enquanto objeto de estudos por meio dos
textos.
Esse aspecto, inclusive distingue as ciências humanas das
ciências exatas que tratam o homem fora do texto. E como ao próprio olhar de F.
Saussure, “o ponto de vista cria o objeto”, cada ciência humana trata de um
objeto textual diferente já que cada uma lança sobre o texto um olhar
específico.
Ao tratar, em seus escritos, do texto como objeto das
ciências humanas, Bakhtin aponta já as duas diferentes concepções do princípio
dialógico, a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo entre discursos,
pois considera que nas ciências humanas o objeto e o método são dialógicos,
afirma Barros.
De acordo com Bakhtin, o texto se define como:
a) objeto significante – o texto
significa;
b) produto da criação ideológica (da
enunciação) – contexto histórico, social, cultural etc.;
c) funcionamento constitutivamente
dialógico, consequente das duas características anteriores – define-se pelo diálogo entre interlocutores e com outros
discursos e textos;
d) materialidade única, não repetível – o
arranjo de sua textura é singular (de cada um dos textos produzidos).
O texto não existe fora da sociedade e não pode ser reduzido
à sua materialidade linguística (empirismo objetivista), nem diluído no estado psíquico
dos seus interlocutores, falante/ouvinte – autor/leitor, (empirismo subjetivista).
Veja que a linguística, entretanto, por fazer abstrações de
suas formas de organização e de suas funções sociais, ideológicas, por fazê-lo
ainda o seu objeto de análise, torna-o
sistematicamente, teoricamente repetível enquanto objeto. Nesse sentido, seria
então a linguística essencialmente uma ciência humana? Pergunta Barros diante
das reflexões propostas por Bakhtin. A autora busca resposta para sua pergunta
no próprio Bakhtin.
Em relação ao método, nas ciências humanas, Bakhtin sustenta
que se trata da compreensão respondente:
- nas ciências naturais – o método busca um objeto;
- nas ciências humanas – o método busca um sujeito produtor
de textos.
As ciências exatas são uma forma monológica do conhecimento:
o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pratica o ato de cognição (de
contemplação) e fala (pronuncia-se).
Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do
conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a título de
coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a título de
coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo;
consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico, pontua
Bakhtin.
Para Bakhtin, as relações entre o sujeito da cognição
(interpreta e compreende) e o sujeito das ciências humanas (conhece um objeto)
são de comunicação entre destinador e destinatário. As reflexões de Bakhtin
sobre as ciências humanas e a linguagem indicam já algumas das razões que o
tornaram precursor e antecipador dos estudos do discurso. Seu ponto de partida,
seu gesto inicial na concepção da própria ciência é o de colocar o texto como
fulcro, como lugar central de toda investigação sobre o homem. Ainda hoje,
muitos dos estudiosos da linguagem têm dificuldade em aceitar isso, em
reconhecer o papel do texto, afirma Barros.
Veja agora, conforme apresenta Barros, alguns conceitos
baseados no princípio dialógico, teorizados por Bakhtin (e por outros autores a
partir de seu legado) que são de alto valor para os estudos do texto e do
discurso.
O primeiro que colocamos em destaque é o conceito de
dialogismo. Como já foi enfatizado, a concepção de linguagem defendida por
Bakhtin é essencialmente dialógica. Se a ciência humana reúne método e objeto
dialógicos, suas ideias sobre o homem e suas práticas são definidas pelo
dialogismo.
Conforme Bakhtin, a alteridade (heterogeneidade) define o
ser humano, pois o outro é imprescindível para a sua constituição. É impossível
pensar o homem – e, portanto, o sujeito – fora das relações que o vinculam ao
outro. Para Bakhtin, a vida é dialógica por natureza.
É nesse panorama que tomam forma as concepções dialógicas da
linguagem e do discurso que mais de perto interessam aos estudos do texto e do
discurso. Por essa via, duas noções de dialogismo revelam-se para nossos
estudos: o diálogo entre interlocutores
e o diálogo entre discursos.
O diálogo entre interlocutores ingressa no campo dos estudos
sobre a interação verbal entre sujeitos e sobre a intersubjetividade. Sobre o
dialogismo entre interlocutores, assegura Barros, quatro aspectos devem ser
destacados:
a) a interação entre os interlocutores é
o princípio fundante da linguagem – não só a linguagem é essencial para a
comunicação, mas a interação entre os interlocutores funda a linguagem;
b) a significação das palavras, o sentido
do texto dependem da relação entre os sujeitos, pois se constroem na produção e
interpretação dos textos;
c) a intersubjetividade precede à
subjetividade, já que a relação entre os interlocutores funda a linguagem e dá
sentido ao texto, construindo os próprios sujeitos enredados no próprio texto
que produzem;
d) as observações feitas podem conduzir a
conclusões precipitadas sobre a noção de sujeito defendida por Bakhtin,
considerando-a “individualista” ou “subjetivista”.
Na realidade, ele enxerga dois tipos de sociabilidade: a relação entre os
sujeitos (interlocutores em interação) e a destes sujeitos com a sociedade que
os abriga.
Considerando a natureza deste dialogismo interacional,
reconhece-se a contribuição de Bakhtin aos estudos
do discurso, da comunicação e da interação verbal, entre os quais estão
assinalados:
- a variação linguística, funcional, discursiva;
- a reversibilidade discursiva (e intersubjetiva);
- a construção dos interlocutores no diálogo;
- o jogo de imagens;
- os simulacros e as avaliações entre eles;
- a questão da competência dos sujeitos da comunicação.
Conforme enfatiza Barros, os estudos da comunicação verbal
não nasceram no seio da linguística puramente ou das teorias do discurso, mas
trilharam um percurso aberto pela teoria da informação.
Considere-se que estes esquemas apresentavam
furos que nunca cobriam suficientemente o funcionamento da comunicação. Entenda
que a concepção bakhtiniana de comunicação é bastante diferente de como a
teoria da informação a concebe e (mesmo sendo-lhe anterior), antecipa-lhe
algumas soluções para os seus principais
problemas que acabaram servindo de escopo às críticas levantadas para
comunicação verbal por outros autores em seu tempo.
A teoria da informação nos anos 50 influencia a linguística
– vejam-se os esquemas de comunicação, de Karl
Buhler a Jakobson, que incluíam funções da linguagem (poética, fática,
metalinguística, referencial etc.) e elementos chave nesse esquema (mensagem, emissor,
destinatário).
Com base nas críticas já levantadas por Bakhtin, três são as
principais objeções que se estabelecem no que se refere aos esquemas de
comunicação mencionados. Seguem junto a elas as reflexões bakhtinianas que
ajudaram a elucidar e resolver estes problemas para tantas teorias:
a) simplificação excessiva da comunicação
linguística – sistematização de códigos e subcódigos, bem como restrição das
funções da linguagem, reduzindo-as à função informativa/referencial.
Bakhtin insiste na variação discursiva, funcional e
linguística, bem como na heterologia e pluridiscursividade da linguagem –
diversidade de vozes, das línguas e dos tipos discursivos. Nesse aspecto, não
se pode ocultar a tentativa de Jakobson (e outros autores) em melhorar os
esquemas de comunicação, tornando-os mais próximos às diferentes funções da linguagem (a função poética, por exemplo!).
b) modelo linear dos esquemas, que se
ocupa apenas ou de preferência com o plano da expressão. Bakhtin vai mais longe
nessa questão, já que considera a interação como a realidade fundamental da
linguagem. Não deve mais ser pensada como via de mão única, do emissor para o
receptor, mas como um sistema reversível e interacional. Aqui também se colocam
os simulacros intersubjetivos e a avaliação na relação entre os interlocutores.
Nesse ponto, há uma grande proximidade com as contribuições de M. Pêcheux sobre
os jogos de imagem entre os sujeitos no discurso.
c) caráter por demais mecanicista.
Bakhtin buscou encaminhar a abordagem da interação verbal
para uma proposta mais “humanizante”, mais “sociologizante”, melhor dizendo. É
aqui que também se releva a contribuição bakhtiniana sobre o diálogo entre
discursos.
O diálogo entre discursos – aqui se pontuam questões de
discurso e enunciação, discurso e contexto histórico, discurso e ideologia, bem
como as noções de intertextualidade, interdiscursividade, polifonia e
heterogeneidade discursiva.
O dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e é a
condição do sentido se efetivar no discurso. Nessa perspectiva, o discurso não
é individual nas duas acepções de dialogismo mencionadas:
- Não é individual, pois se constrói entre dois
interlocutores, pelo menos (que por sua vez, são seres sociais).
- Não é individual, pois se constrói como um diálogo entre
discursos, mantendo relações com outros discursos paralelos ou anteriores.
Por essa ótica, conforme reporta Barros, o texto é tido em Bakhtin
tanto do ponto de vista de sua constituição interna como externa, sendo
considerado assim como um objeto completo para os estudos e métodos linguístico-discursivo-social
e histórico.
Três pontos devem ser esclarecidos: em primeiro lugar é
preciso observar que as relações do discurso com a enunciação, com o contexto
sócio-histórico ou com o “outro” são, para Bakhtin, relações entre discursos-enunciados; o segundo
esclarecimento é o de que o dialogismo
tal como foi acima concebido define o texto como “tecido de muitas vozes”, ou
de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas
às outras ou polemizam entre si no interior do texto; a terceira e última
observação é sobre o caráter ideológico dos discursos assim definidos. Com essa
concepção de dialogismo aproximamo-nos não mais dos estudos da comunicação verbal, mas principalmente das
teorias pragmáticas, das teorias do discurso e do texto e até de preocupações
psicanalíticas como o “outro” do discurso, defende Barros.